O ESPÍRITO DE SANTA LUÍSA DE MARILLAC
1660 foi um ano de grandes lutos para a Família Vicentina. O Pe. Antoine Portail, primeiro Coirmão de São Vicente de Paulo e primeiro Diretor das Filhas da Caridade, morreu em fevereiro. Santa Luísa de Marillac, sua colaboradora e amiga, morreu em março. Ele mesmo morrerá em setembro. Embora o nome e a imagem de São Vicente fossem universalmente reconhecidos, já no século XVII, o nome e a imagem de Santa Luísa parecem apagar-se completamente. Só em 1933 ela sairá definitivamente da sombra de São Vicente, para retomar seu lugar ao lado dele, não só como Fundadora das Filhas da Caridade, mas ainda como uma mulher de hoje. Por suas ações e suas palavras, foi capaz de despertar em cada um, em cada uma de nós, o conhecimento de seu próprio valor.
QUEM
FOI LUÍSA DE MARILLAC NO SÉCULO XVII?
Em
maio de 1629, São Vicente de Paulo envia a jovem viúva que tinha
encontrado uns anos antes, para que vá visitar as Confrarias de
Caridade, que tinham começado tão bem mas que, depois de um tempo,
perdiam o zelo do início. Bem que precisavam reencontrar o
entusiasmo de sua origem. Para São Vicente, ninguém estava mais bem
qualificado para isso que Santa Luísa de Marillac. Ela deu conta
dessa missão de modo notável e São Vicente se alegrou com o
sucesso dela.
Quando Santa Luísa encontrou São Vicente, no final de 1625 ou no início de 1626, o marido dela acabara de morrer, depois de uma longa e penosa doença. Ficara sozinha com um filho difícil de 12 anos e com dificuldades econômicas. Era uma mulher frágil que procurava seu caminho. São Vicente a acompanhou. Pouco a pouco, percebeu, por trás das aparências de dúvida, hesitação e ansiedade, um mulher forte, dotada de dons excepcionais, capazes de fazer dela a “líder” que ele buscava para colaborar com ele em suas obras de caridade.
Esse
envio em missão de maio de 1629 não foi senão o começo de uma
amizade e uma colaboração que transformaria a vida consagrada
feminina e o serviço dos mais necessitados na França e além de
suas fronteiras e que continua até nossos dias no mundo inteiro. E
no meio de todas essas transformações encontramos a figura de Santa
Luísa de Marillac. Ela percebeu imediatamente a necessidade de
agrupar em comunidade aquelas moças da zona rural que estava
formando, a pedido de São Vicente, para trabalhar com as Senhoras da
Caridade no serviço dos pobres doentes em seus domicílios. Num
mesmo impulso, fundou as Filhas da Caridade e construiu uma ponte
sobre o abismo que separava os ricos e poderosos dos camponeses e dos
pobres e separava os homens das mulheres. Com São Vicente de Paulo e
as primeiras Filhas da Caridade, criou uma vasta rede de caridade que
não excluía ninguém.
São
Vicente de Paulo tinha uma visão muito ampla das necessidades dos
Pobres. Santa Luísa tinha capacidade da organização, atenção aos
pormenores, audácia e criatividade para transformar aquela visão em
realidade. Basta considerar a obra das crianças abandonados pelas
ruas ou nas portas das igrejas (ela se apaixonou por essa obra, sem
dúvida por causa de seu próprio nascimento como “filha natural”)
e a obra do Asilo do Santo Nome de Jesus para pessoas idosas, para
reconhecermos a verdade desta afirmação.
POR
QUE ELA DESAPARECE?
Dado
o que acabamos de dizer sobre a colaboração estreita e frutuosa
entre São Vicente e Santa Luísa tanto na fundação das Filhas da
Caridade como no desenvolvimento das obras de caridade que atendiam a
toda a gama das necessidades dos mais pobres, ficamos um pouco
espantados com o desaparecimento quase total de Santa Luísa de
Marillac. Mesmo depois de sua canonização em março de 1934 (dois
séculos depois da de São Vicente de Paulo) e durante a celebração,
em 1960, do terceiro centenário da morte deles, mal se falou dela.
A
resposta sobre esse desaparecimento é dupla. De um lado, houve o
esforço para glorificar São Vicente de Paulo e fazê-lo canonizar o
mais rápido possível, depois da sua morte, como o grande apóstolo
da Caridade. Nesse projeto, havia lugar para as Filhas da Caridade, mas como filhas de São Vicente de Paulo. Mas não havia lugar para
uma colaboradora que tinha dado carne e osso às ideias dele. Por
isso, não se falava dela e ainda menos de suas contribuições.
Devemos, entretanto, reconhecer que, durante sua vida, Santa Luísa
de Marillac jamais buscou aparecer na frente de nada. Ele mesma nos
diz:
“Ao nascer em pobreza e abandono dos homens, Nosso Senhor ensina-me a pureza de seu amor (…) Disso aprenderei a manter-me oculta em Deus, com o desejo de servi-lo sem buscar, para coisa alguma, o testemunho dos homens e a satisfação de sua comunicação, contentando-me com que Deus veja o que quero ser para ele: para tal finalidade, quer que me entregue a ele, a fim de realizar em mim esta disposição: assim o tenho feito, por sua graça” (Santa Luísa de Marillac, Correspondência e Escritos. Trad. da Irmã Lucy Cunha. Ribeirão Preto, Editora Legis Summa, s. d.; p. 812).
A segunda razão é mais complexa. No interior da Companhia das Filhas da Caridade, houve aparentemente uma reticência, mesmo uma certa recusa de fazer andar a causa de canonização de uma fundadora “filha natural.” Acabaram por fazer os trâmites necessários, mas sem grandes entusiasmos. Se é verdade que os Santos têm seus momentos, o de Santa Luísa de Marillac ainda não tinha chegado. Para isso foi necessário esperar a década de 1980.
POR QUE ELA REAPARECE?
Se,
em 1983, Santa Luísa de Marillac saiu enfim da sombra, foi porque o
terreno fora preparado desde 1958, pela publicação da biografia
escrita por Mons. Jean Calvet, intitulada Santa
Luísa de Marillac por ela mesma. Retrato.
Nesse livro, o autor fala publicamente e pela primeira vez das
circunstâncias do nascimento dela, dos acontecimentos dramáticos,
por vezes traumatizantes, de sua infância e juventude e de uma vida
marcada por momentos fugazes de felicidade e por sofrimentos sempre
muito próximos. Seu objetivo era a “verdade, companheira da
santidade”. Reconheceu a tendência de Santa Luísa de caminhar na
“trilha” de São Vicente de Paulo e “como sua sombra”. Calvet
queria “ter ressaltado a originalidade dela e posto em relevo sua
grandeza própria” como “uma das glórias mais puras das mulheres
francesas” (Calvet, p. 8-9).
Faltava
ainda a convergência de dois outros elementos significativos: o
movimento de Promoção da Mulher e a reflexão do Concílio Vaticano
II sobre a dignidade da pessoa humana (Constituição Gaudium et
Spes) para que reaparecesse a verdadeira Luísa de Marillac. O
momento propício só chegará em 1983. Nesse ano, apareceu a nova
edição da Correspondência
e [dos] Escritos de Santa Luísa de Marillac.
Graças a uma apresentação mais acessível, a uma nova
classificação, a numerosas notas e a um índice pormenorizado,
descobriu-se, sobretudo através de suas cartas às Irmãs, uma
mulher cativante, cheia de humanismo, atenta a cada ser humano em
todas as suas dimensões.
O
QUE SANTA LUÍSA OFERECE AO MUNDO DE HOJE?
O aparecimento da Correspondência e dos Escritos apresentou a “verdadeira” Santa Luísa ao mundo de fala francesa. As traduções que logo apareceram em muitas línguas espalharam sua fama pelo mundo inteiro. Mas que retrato nos dão dela? Essa mulher livre e forte de seu tempo, o que ela oferece precisamente para os homens e as mulheres do século XXI?
O
mundo mudou desde a época de Santa Luísa de Marillac, mas, mesmo
passados alguns séculos, ela traz para este mundo dominado pela
tecnologia valores universais e duradouros e o calor nas relações
humanas. Trezentos e cinquenta anos depois de sua morte, alguns
desses valores têm uma importância particular para a Família
Vicentina, a saber:
O
PAPEL DA MULHER
Mulheres
do povo
Muito
antes que se começasse a falar disso, Santa Luísa procurou melhorar
a situação das mulheres simples do povo: possibilidade de viver uma
nova forma de vida consagrada; formação humana, espiritual e
profissional; preparação para a responsabilidade de serem
educadoras das crianças expostas; professoras de escolas para
meninas pobres; cuidadoras dos doentes e dos abandonados.
“Deveis
ser muito reconhecidas pelas graças que Deus vos concedeu,
colocando-vos em condição de prestar-lhe tão grandes serviços” (Escritos,
p. 309). “Não tenhais medo” (Escritos, p. 951).
Mulheres
da burguesia e da nobreza
Santa Luísa de Marillac estava bem situada para fazer a ligação entre as pessoas simples que eram as Filhas da Caridade e as Senhoras da Caridade que eram da alta sociedade. Isto, porque, como uma “de Marillac”, tinha seu lugar nesse meio, embora tivesse escolhido viver em comunidade com mulheres do povo. Enquanto formava as primeiras Filhas da Caridade para o serviço dos Pobres, muitas vezes em colaboração com as Senhoras da Caridade, seu papel junto delas, na maior parte do tempo, era de animação. Tentava, por suas palavras e seu modo de agir, abri-las ao respeito de cada pessoa, ajudá-las a discernir sob as aparências a dignidade das pessoas pobres, a respeitá-las e a trabalhar em pé de igualdade com as Filhas da Caridade.
“(…)
as Senhoras [da Caridade] reconheceram as necessidades dos Pobres e
(…) Deus lhes deu a graça de socorrê-los de modo muito caridoso e
magnificamente. (…) Os meios de que essas caridosas Senhoras se
serviram para organizar suas distribuições não foram suas santas
assembléias… [mas] fornecendo pessoas fiéis e caridosas para
constatarem as verdadeiras necessidades e fornecer-lhes
prudentemente, o que serviu não só no corporal mas também no
espiritual” (Reflexões de Santa Luísa de Marillac, Documentos, p.
788 da ed. Francesa).
REDES
DE CARIDADE
Santa
Luísa de Marillac jamais quis imaginar que o serviço dos Pobres
fosse reservado a um grupo particular. Para ela, a diversidade e a
extensão das necessidades requeriam uma vasta rede de colaboração:
mulheres e homens, Senhoras da Caridade, Padres e Irmãos da
Congregação da Missão, Filhas da Caridade, Administração
Municipal.
Para
assegurar um serviço eficaz, esta colaboração tinha suas
exigências. Primeiro, uma obra de colaboração vicentina exige de
cada um a vontade de reconhecer e aceitar a personalidade do outro
com suas qualidades e seus defeitos.
“Renovai-vos
no espírito de união e cordialidade (…) O exercício da caridade
(…) nos leva a não ver as faltas alheias com azedume, mas a
desculpá-las sempre, humilhando-nos” (Escritos, p. 357).
Em
segundo lugar, tal colaboração pede a todos o respeito mútuo, a
capacidade de acolher a palavra do outro, sabendo também
expressar-se. “Apresentai
humildemente, fortemente e com mansidão e brevidade vossas razões”
(Ecrits, p. 141).1
Finalmente, o serviço dos pobres nunca será vicentino, se não se caracterizar pelo calor humano, pelas qualidades femininas de que Santa Luísa fala tão frequentemente e de que é modelo em sua própria vida: compaixão, ternura, mansidão, numa palavra, AMOR.
“Sede
muito afáveis e bondosas com os vossos Pobres. Sabeis que são
nossos amos, a quem devemos amar com ternura e respeitar
profundamente. Não basta ter isso na memória, mas devemos
demonstrá-lo por nossos serviços caridosos e afáveis” (Escritos,
p. 365).
☞ NOTA
DA FONTE:
Reflexão
por Irmã Elisabeth Charpy, FC, da província da Paris e Irmã Louise
Sullivan da província da Albany dos Estados Unidos. Tradução por
Lauro Palú, CM, Província do Rio de Janeiro
☞
NOTA:
Em
18 de Setembro de 2013, foi celebrado o 350º Aniversário de Morte
de São Vicente e de Santa Luísa de Marillac
FONTE:
excertos do artigo publico com o título acima, capturado em
http://www.pbcm.com.br/350o-aniversario-da-morte-de-sao-vicente-e-de-santa-luisa-de-marillac/ficha-de-reflexao-4-janeiro2010/ - Os destaques no texto, são nossos
_________
1
Nota: No texto em francês, citam-se os ecrits, p. 141, mas não
existe lá essa frase. Como não sei de onde foi tirada a frase, não
posso citar nada pela tradução portuguesa. Se puderem verificar o
francês, procuraremos o correspondente na tradução de Santa Luísa
para o português.
Imagens:
http://santossanctorum.blogspot.com.br/
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