OS CORAÇÕES JUSTAPOSTOS NA MEDALHA MILAGROSA SIMBOLIZAM A CORREDENÇÃO E A MEDIAÇÃO DE MARIA – PARTE I
“De
que modo Nossa Senhora é nossa Corredentora?”
(Perguntou um Terceiro Franciscano de Londrina)
“Qual
o grau de certeza teológica da mediação universal de Nossa Senhora
e como conciliar tal mediação com 1 Tim 2,5 ?”
(Perguntou um Catecúmeno de Recife)
Um
só é o Mediador entre Deus e os homens, a saber, Cristo. Tal é a
doutrina de São Paulo (1 Tim 2,5) e da Tradição cristã,
oportunamente inculcada pelos concílios de Florença em 1442 e
Trento em 1546 (cf. Denzinger, Enchiridion 711.790).
A
unidade, porém, do Mediador não exclui a colaboração subordinada
de Maria Santíssima na obra da Redenção. Já do simples fato de
que, por livre vontade divina, a Virgem se haja tornado Mãe de Deus
ou a criatura mediante a qual Deus se encarnou, decorre seja ela de
algum modo Medianeira; havendo dado ao mundo a Fonte de todas as
graças, como não lhe dará atualmente cada uma das graças que
recebe?
Desde
a definição da Divina Maternidade de Maria em Éfeso no ano de 431,
esta proposição se foi tornando cada vez mais explícita na Igreja
e é hoje amplamente focalizada.
Eis
como a explicam os teólogos contemporâneos:
Distingam-se
dois aspectos da Mediação de Maria:
1)
a mediação na aquisição
dos
méritos de nossa Redenção ou na Redenção dita objetiva.
Por esta sua função, Maria é chamada Corredentora;
2)
a mediação na distribuição
atual
dos méritos outrora adquiridos ou na Redenção subjetiva.
Tendo tomado parte na obtenção da vitória, é lógico que Maria
concorra para a distribuição dos frutos da mesma. A este título, a
Virgem é, propriamente dita, Dispensadora
ou
Medianeira
de
todas as graças.
Analisemos
separadamente cada um desses aspectos da teologia mariana.
Gravura da Anunciação do Senhor |
1. A CORREDENTORA
Por
este título, entende-se dizer que Maria, junto com seu Divino Filho,
tomou parte na obtenção do tesouro de graças que valeram a
reconciliação do gênero humano com o Pai Eterno.
E quais terão sido as sábias intenções de Deus que O levaram a atribuir a Maria Santíssima tão solene função no seu plano eterno?
Duas
são as razões, indicadas pela Escritura e a Tradição, para
ilustrar tão elevado desígnio:
1)
o paralelismo vigente entre «o primeiro Adão e a primeira Eva», de
um lado, e «o segundo Adão e a segunda Eva», do outro. Tal
correspondência já é mencionada ligeiramente por São Paulo, aos
Romanos 5,14, e desde o séc. II foi explanada pela Tradição cristã
(S. Justino, S. Ireneu, Tertuliano...).
Aprofundemos
o paralelismo.
Virgem Imaculada de Guadalupe combatendo o mal, representado pelo Dragão de sete cabeças (Ap 12) |
Conforme
o plano de Deus (cf. Gên 2,20-23), a mulher foi criada para ser a
auxiliar semelhante ao homem, sua companheira na luta cotidiana,
principalmente na obra de transmitir a vida. Sem a mulher, o varão
não consegue a dignidade de pai. Ora, se Deus assim quis proceder na
constituição da natureza humana no início dos tempos, parece que
deve ter procedido de maneira análoga na obra de reconstituição e
consumação da criatura na plenitude dos tempos. Na base desta
verificação, os teólogos afirmam que o plano divino de recriação
do gênero humano obedeceu à mesma linha que o da criação: o Filho
de Deus se tornou o novo Pai, o segundo Adão, do qual todos os
homens devem renascer, não na ordem física, mas no plano
sobrenatural; e, em vista desse renascimento espiritual ou dessa obra
de transmitir a vida sobrenatural, o novo Adão quis ter por auxiliar
subalterna a nova Eva: Maria. É São Bernardo (+1153) quem o lembra:
«Irmãos caríssimos, há um homem e uma mulher que nos prejudicaram grandemente, mas, graças a Deus, há também um homem e uma mulher que tudo restauraram, e com notável superabundância de graça... Sem dúvida, Cristo por si só bastava-nos, pois... tudo que possamos fazer no plano da salvação, d’Ele vem; todavia era bom que o homem não ficasse só. Havia profunda conveniência em que os dois sexos tomassem parte na nossa Redenção, como haviam tomado parte em nossa queda» (Sermão sobre as doze estrelas 1, ed. Migne lat. 183, 429).
Este
texto faz ressoar a harmonia que caracteriza as obras de Deus. O
Todo-Poderoso age de maneira suave e forte (cf. Sab 8,1): suave,
porque respeita o humano e dele se serve; forte, porque revigora o
elemento humano decaído que Deus quer utilizar.
E
como terá Maria cumprido o seu papel de nova Eva associada à obra
da Redenção?
A Imaculada Conceição de Maria |
Cumpriu-o
primeiramente quando pronunciou o seu Fiat
para
que o Filho de Deus nela se encarnasse (cf. Lc 1,38). Da aquiescência
da Virgem pode-se dizer que Deus quis fazer depender a realização
da Redenção (cf. São Tomaz, Suma Teológica III 30, 1c e ad 1).
Destarte, dando a sua carne ao Filho de Deus, a Virgem colaborou
remotamente na obra de resgate do gênero humano. Sua função
sagrada, porém, estendeu-se mais além: o Filho de Deus não se
encarnou senão para oferecer a sua carne padecente ao Pai como
hóstia de reparação pelo gênero humano; consequentemente o Fiat
de
Maria envolvia participação da Virgem Mãe na oferta do Calvário;
esse Fiat
prolongou-se
no consentimento que ela deu à imolação do Filho, compartilhando
generosamente com Ele ao pé da Cruz suas penas e dores. E esse
«compartilhar» foi fecundo ... Pode-se dizer que, depois de haver
gerado o Cristo Cabeça, Maria, padecendo ao pé da Cruz, sofreu as
dores do parto em que gerou o Cristo Místico ou o novo gênero
humano; foi então que ela se tornou a Mãe dos homens, como insinua
a palavra que Jesus lhe dirigiu na hora das dores mais cruciantes:
«Mulher,
eis o teu filho»
(Jo 19,26).
A
propósito vem a observação do Santo Padre Bento XV na carta «Inter
Sodalicia»
de 22 de março de 1918 (AAS 10 [1918] 181-84):
“Os doutores da Igreja costumam notar que, se Maria, a Virgem Santíssima, a qual parecia ausente de toda a vida pública de Jesus Cristo, de repente se encontra presente à morte de seu Filho Crucificado, isto não se deu independentemente de um desígnio divino... Enquanto o seu Filho sofria e morria, ela sofria e de certo modo morreu com Ele; para a salvação dos homens, ela renunciou aos direitos maternos sobre o seu Filho [não se entenda esta expressão em sentido estritamente jurídico]; a fim de aplacar a justiça divina na medida em que o podia, ela imolou o seu Filho, de sorte que se pode dizer com razão que, com Cristo, ela resgatou o gênero humano”.
A crucifixão do Senhor. Aos pés da Cruz estava Maria, a Mãe de Jesus, Maria Madelena e o apóstolo S. João |
Eis
como se desenvolve o paralelismo «Adão, Eva» — «Cristo, Maria»
até se chegar à conclusão de que a Virgem Santíssima foi
intimamente associada à obra da Redenção objetiva.
2)
Ainda o seguinte traço fornece fundamento ao título de
Corredentora; Maria sofreu como Rainha dos mártires, e, se se dá
crédito à tradição mais antiga, morreu (note-se que o Santo Padre
Pio XII em 1950 apenas definiu a elevação corporal de Maria aos
céus, deixando suspensa a questão da morte da Virgem, que muitos
autores, seguindo os documentos mais antigos, afirmam, mas que outros
teólogos, atendendo antes a razões especulativas, preferem negar).
Ora, já que Maria fora preservada do pecado original, o sofrimento
não era pena a ela devida. As suas dores só podem ter sido
motivadas pelos pecados alheios e em vista da expiação dos mesmos;
o que equivale a dizer: o seu sofrimento foi, unido ao de Jesus, um
sofrimento estritamente redentor, corredentor.
Assim
comprovado o fato da Corredenção, é preciso acentuar que ele não
derroga à obra de Cristo.
Com
efeito, Maria tornou-se corredentora porque seu Divino Filho lhe quis
outorgar esta dignidade. Ela mesma, sem dúvida, foi remida, mas
remida de modo próprio e com a finalidade de ser particularmente
associada à obra da Redenção dos demais homens (a Virgem
Santíssima pertence, como se diz, à linha da união hipostática; o
que quer dizer: está colocada acima de qualquer criatura, e tudo que
nela se realiza, inclusive a obra da Redenção, se realiza de modo
único). Se Maria foi remida, se tudo nela é graça, vê-se que ela
não tem méritos independentes dos de Cristo nem nos comunica algo
de seu; ela antes se assemelha à lua, que ilumina a terra não por
sua própria luz, mas exclusivamente na medida em que e iluminada
pelo sol.
Nossa Senhora das Dores |
A
título de ilustração, considere-se que o ser de Deus é infinito,
e o das criaturas participado; que se dá então quando Deus cria
novos seres? Está claro que não se multiplica a quantidade de ser
anterior à criação, mas apenas surgem novos suportes ou
sustentáculos do ser anteriormente existente. De modo análogo, os
méritos de Cristo são infinitos; Maria nada lhes pôde acrescentar,
mas foi constituído novo e privilegiado receptáculo desses méritos.
Perguntar, pois, por que era necessária à Corredenção de Maria,
já que a Redenção a ser realizada por Cristo nos bastava, equivale
a perguntar por que era necessário o ser das criaturas, já que o
ser de Deus basta para esgotar toda a linha do Infinito; vê-se que
se trata de necessidade livremente instituída pela soberana e
benévola Vontade de Deus.
Mais
ainda se poderia insistir: Por que quis Deus multiplicar os sujeitos
da obra redentora? — Responder-se-á: o Criador tudo faz com
abundância e prodigalidade; ora, já que fez dois tipos humanos
destinados a se completar mutuamente na transmissão da vida natural,
quis também associar um varão (Cristo em sua natureza humana) e uma
mulher na comunicação da vida sobrenatural.
Após
o que foi acima visto, conclui-se que negar a Corredenção mariana a
título de enaltecer a Redenção adquirida por Cristo vem a ser, em
última análise, não propriamente honrar a Cristo, mas antes
depauperar a obra do Redentor. Bossuet (+1704) observava com muita
oportunidade:
“Não sejamos daqueles que julgam diminuir a glória de Jesus Cristo quando nutrem elevados sentimentos para com a Santíssima Virgem e os Santos... Por certo, seria atribuir a Deus fraqueza deplorável crer que se torne invejoso das dádivas e luzes que Ele derrama sobre as suas criaturas. Pois que são os santos e a Santíssima Virgem se não a obra das mãos e da graça do Criador? Se o sol fosse animado, não conceberia inveja ao ver 'a lua que preside à noite', como diz Moisés, e preside com luz tão clara porque toda a claridade da lua se deriva dele e é o sol mesmo que a nós refulge e nos ilumina pelo reflexo de seus raios.
Por mais elevadas que sejam as perfeições que reconhecemos em Maria, poderia Jesus Cristo ter-lhes inveja, pois que d’Ele é que decorrem e é à glória exclusiva d'Ele que se referem?” (3o sermão na festa da Conceição da Virgem 1669. Obras t. II. Paris, 1863, 51).
Continua....
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FONTE:
artigo de Dom Estêvão Bettencourt, OSB respondendo a duas perguntas
formuladas por Terceiro Franciscano e um Catecúmeno, “Revista
Pergunte e Responderemos 004 – Abril 1958”, capturado em
http://www.pr.gonet.biz/kb_frame.php
– O título e os destaques são nossos, bem como revisamos e atualizamos o texto)