A “CHEIA DE GRAÇA” E A SOLENIDADE DA ANUNCIAÇÃO DO SENHOR
“O
mais
sublime dos anjos foi enviado dos céus para saudar e anunciar a
encarnação do Verbo à Virgem Maria. A virtude do Altíssimo tendo
coberto Maria com sua sombra, tornou Mãe àquela que era Virgem sem
núpcias: eis o mistério celebrado na Festa da Anunciação.”1
Hoje
a Igreja celebra a grande Solenidade da Anunciação do Senhor2.
No início, esta festa teve outras designações: “'Anunciação
da Bem-aventurada Virgem Maria', 'Anunciação do Anjo à
Bem-aventurada Virgem Maria', 'Anunciação do Senhor', 'Anunciação
de Cristo', 'Concepção de Cristo'. Nos últimos séculos prevaleceu
a 'Anunciação da Bem-aventurada Virgem Maria', sinal de que a festa
foi entendida principalmente em perspectiva mariana. Na reforma
litúrgica determinada pelo Concilio Vaticano II foi dado a essa
festa a denominação de 'Anunciação do Senhor', com um valor,
portanto, predominantemente cristológico, e com razão, pois … o
tema central do episódio e da respectiva narrativa da Anunciação é
a Encarnação do Filho de Deus, e a veneração cristã de Maria
radica no fato que a grandeza de sua missão e pessoa está em ter
sido ela inserida por pura graça singular e divina no mistério de
Jesus Cristo como Mãe do Messias Filho de Deus (cf. LG 67).3”
Neste
espírito de festa e gratidão a Deus, queremos meditar esta passagem
do Evangelho de São Lucas ao narrar a cena da Anunciação, quando o
Anjo Gabriel se dirige à Santíssima Virgem saudando-A: “Alegra-Te,
cheia de graça …”
(Lc 1:28). Foi a primeira saudação do Embaixador celeste ao
ingressar no humilde cômodo da Casa de Nazaré onde estava a
Virgenzinha, e é o início da oração mariana por excelência, a
“Ave
Maria”.
Anjo Gabriel, o mensageiro celeste |
Pois
bem, o que significa a expressão “cheia
de graça” (gratia plena)?
O
Pe. Antônio Miranda, Missionário de Nossa Senhora do Santíssimo
Sacramento, nos dá uma definição teológica: “Toda
criatura, antes de existir no tempo, existiu na
eternidade, dentro dos eternos desígnios de Deus. Para Deus não
houve passado e nem haverá futuro. Existe, existiu e existirá
sempre o eterno presente, pelo conhecimento atual
de
tudo, conhecimento esse que é, n'ELE,
Deus,
uma atualização
eterna
das causas. A história do mundo e das criaturas, é escrita e lida
eternamente por Deus num presente sem principio e sem termo.
E
é assim que Maria Ss. existiu, no seio e no pensamento de Deus,
eternamente. E pode-se até dizer, mais que doutra criatura, Deus
ocupou-se d'Ela, pois nenhuma outra mais intimamente está com Ele
relacionada.
São
Bernardo chega a afirmar que Maria Ss. é a 'obra da eterna
idealização de Deus' –
opus
oeterni concilii – e
a sua 'preocupação de todos os séculos' –
negotium soeculorum. (Sermo
II De Pentecoste).
'É
uma coisa inconcebível diz o Venerável Olier –
como Deus, desde a eternidade, antes da formação de todas as
criaturas, trazia presente a seu espírito esta divina Esposa. Para
Ele
não
há futuro nem passado; tudo é presente aos seus olhos: na luz
eterna Ele vê distintamente todas as coisas. Desde toda a eternidade
havia, portanto, no Pai, um caráter, uma figura, que representava
Jesus Cristo e sua Mãe, e, desde então, estava Maria tão presente
aos olhos e ao espírito de Deus, como se já
fora
formada, como se estivera
já
efetivamente no mundo'”4.
De
forma magistral, Sua Santidade, o Papa João Paulo II, hoje
canonizado5,
na Primeira parte de sua
Carta
Encíclica
“Redemptoris
Mater”
-
Sobre
a Bem-Aventurada Virgem Maria na Vida da Igreja que Está a Caminho,
expõe, à luz do Magistério da Igreja, este singular privilégio da
Virgem Imaculada, escolhida desde a eternidade como a Mãe do Verbo
Encarnado.
Vejamos:
“Maria
é
introduzida no mistério de Cristo definitivamente
mediante aquele acontecimento que foi a Anunciação
do
Anjo. Esta se deu em Nazaré, em circunstâncias bem precisas da
história de Israel, o povo que foi o primeiro destinatário das
promessas de Deus. O mensageiro divino diz à Virgem: «Salve, ó
cheia de graça, o Senhor é contigo» (Lc
1,
28). Maria «perturbou-se e interrogava-se a si própria sobre o que
significaria aquela saudação» (Lc
1,
29): que sentido teriam todas aquelas palavras extraordinárias, em
particular, a expressão «cheia de graça» (kecharitoméne).
Se
quisermos meditar juntamente com Maria em tais palavras e,
especialmente, na expressão «cheia de graça», podemos encontrar
uma significativa correspondência precisamente na passagem acima
citada da Carta aos Efésios6.
E se, depois do anúncio do mensageiro celeste, a Virgem de Nazaré é
chamada também a «bendita entre as mulheres» (cf. Lc 1,
42), isso se explica por causa daquela bênção com que «Deus Pai»
nos cumulou «no alto dos céus, em Cristo». É uma bênção
espiritual, que se refere a todos os homens e traz em si mesma a
plenitude e a universalidade («toda a sorte de bênçãos»), tal
como brota do amor que, no Espírito Santo, une ao Pai o Filho
consubstancial. Ao mesmo tempo, trata-se de uma bênção derramada
por obra de Jesus Cristo na história humana até ao fim: sobre todos
os homens. Mas esta bênção se refere a Maria em medida especial
e excepcional: ela, de fato, foi saudada por Isabel como «a
bendita entre as mulheres».
O Anjo revela a Maria o plano salvífico do Pai: Ela daria luz a um filho, e lhe colocaria o nome de JESUS, "Ele será grande e chamar-se-á Filho do Altíssimo" (Lc 1:32) |
O
motivo desta dupla saudação, portanto, está no fato de ter se
manifestado na alma desta «filha de Sião», em certo sentido, toda
a «magnificência da graça», daquela graça com que «o Pai ...
nos tornou agradáveis em seu amado Filho». O mensageiro,
efetivamente, saúda Maria como «cheia de graça»; e chama-lhe
assim, como se este fosse o seu verdadeiro nome. Não chama a sua
interlocutora com o nome que lhe é próprio segundo o registo
terreno: «Miryam» (= Maria); mas sim com este nome novo: «cheia
de graça». E o que significa este nome? Por que é que o
Arcanjo chama desse modo a Virgem de Nazaré?
Na
linguagem da Bíblia «graça» significa um dom especial, que,
segundo o Novo Testamento, tem a sua fonte na vida trinitária do
próprio Deus, de Deus que é amor (cf. 1 Jo 4, 8). É fruto
deste amor a «eleição» ― aquela eleição de que fala a
Carta aos Efésios. Da parte de Deus esta «escolha» é a
eterna vontade de salvar o homem, mediante a participação na sua
própria vida divina (cf. 2 Pdr 1, 4) em Cristo: é a salvação
pela participação na vida sobrenatural. O efeito deste dom eterno,
desta graça de eleição do homem por parte de Deus, é como que um
gérmen de santidade, ou como que uma nascente a jorrar na
alma do homem, qual dom do próprio Deus que, mediante a graça,
vivifica e santifica os eleitos. Desta forma se verifica, isto é, se
torna realidade aquela «bênção» do homem «com toda a sorte de
bênçãos espirituais», aquele «ser seus filhos adotivos ... em
Cristo», ou seja, n'Aquele que é desde toda a eternidade o «Filho
muito amado» do Pai.
Quando lemos que o mensageiro diz a Maria «cheia de graça», o contexto evangélico, no qual confluem revelações e promessas antigas, permite-nos entender que aqui se trata de uma «bênção» singular entre todas as «bênçãos espirituais em Cristo». No mistério de Cristo, Maria está presente já «antes da criação do mundo», como aquela a quem o Pai «escolheu» para Mãe do seu Filho na Encarnação ― e, conjuntamente ao Pai, escolheu-a também o Filho, confiando-a eternamente ao Espírito de santidade. Maria está unida a Cristo, de um modo absolutamente especial e excepcional; e é amada neste «Filho muito amado» desde toda a eternidade, neste Filho consubstancial ao Pai, no qual se concentra toda «a magnificência da graça». Ao mesmo tempo, porém, ela é e permanece perfeitamente aberta para este «dom do Alto» (cf. Tg 1, 17) Como ensina o Concílio, Maria «é a primeira entre os humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente esperam e recebem d'Ele a salvação». [Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 55]
A
saudação e o nome «cheia de graça» dizem-nos tudo isto; mas, no
contexto do anúncio do Anjo, referem-se em primeiro lugar à
eleição de Maria como Mãe do Filho de Deus. Todavia, a
plenitude de graça indica ao mesmo tempo toda a profusão de dons
sobrenaturais com que Maria é beneficiada em relação com o fato de
ter sido escolhida e destinada para ser Mãe de Cristo. Se esta
eleição é fundamental para a realização dos desígnios
salvíficos de Deus, a respeito da humanidade, e se a escolha eterna
em Cristo e a destinação para a dignidade de filhos adotivos se
referem a todos os homens, então a eleição de Maria é
absolutamente excepcional e única. Daqui deriva também a
singularidade e unicidade do seu lugar no mistério de Cristo.
O
mensageiro divino lhe diz: «Não temas, Maria, pois achaste graça
diante de Deus. Eis que conceberás e darás à luz um filho, ao qual
porás o nome de Jesus. Ele será grande e será chamado Filho do
Altíssimo» (Lc 1, 30-32). E quando a Virgem, perturbada por
esta saudação extraordinária, pergunta: «Como se realizará isso,
pois eu não conheço homem?», recebe do Anjo a confirmação e a
explicação das palavras anteriores. Gabriel diz-lhe: «Virá
sobre ti o Espírito Santo e a potência do Altíssimo estenderá
sobre ti a sua sombra. Por isso mesmo o Santo que vai nascer será
chamado Filho de Deus» (Lc 1, 35).
A
Anunciação, portanto, é a revelação do mistério da Encarnação
exatamente no início da sua realização na terra. A doação
salvífica que Deus faz de si mesmo e da sua vida, de alguma maneira
a toda a criação e, diretamente, ao homem, atinge
no mistério da Encarnação um dos seus pontos culminantes.
Isso constitui, de fato, um vértice de todas as doações de graça
na história do homem e do cosmos. Maria é a «cheia de graça»,
porque a Encarnação do Verbo, a união hipostática do Filho de
Deus com a natureza humana, se realiza e se consuma precisamente
nela. Como afirma o Concílio, Maria é «Mãe do Filho de Deus e,
por isso, filha predileta do Pai e templo do Espírito Santo; e, por
este insigne dom de graça, leva vantagem a todas as demais criaturas
do céu e da terra». [ibid.,
53]
A
Carta
aos Efésios,
falando da «magnificência da graça» pela qual «Deus Pai ... nos
tornou agradáveis em seu amado Filho», acrescenta: «N'Ele temos a
redenção pelo seu sangue» (Ef
1,
7). Segundo a doutrina formulada em documentos solenes da Igreja,
esta «magnificência da graça» manifestou-se na Mãe de Deus pelo
fato de ela ter sido «redimida de um modo mais sublime». [cf. Pio
IX, Carta Apost. Ineffabilis
Deus (8
de Dezembro de 1856): Pii
IX P. M. Acta,
pars I, 616; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen
gentium,
53]. Em virtude da riqueza da graça do amado Filho e por motivo dos
merecimentos redentores d'Aquele que haveria de tornar-se seu Filho,
Maria
foi preservada da herança do pecado original.
[cf. S. Germano de Const., In
Annuntiationem SS. Deiparae Hom.:
PG 98, 327 s.; S. André de Creta, Canon
in B. Mariae Natalem, 4:
PG
97,
1321 s.; In
Nativitatem B. Mariae,
I: PG
97,
811 s.; Hom.
in Dormitionem S. Mariae 1:
PG 97, 1067 s]. Deste modo, logo desde o primeiro instante da sua
concepção, ou seja, da sua existência, ela pertence a Cristo,
participa da graça salvífica e santificante e daquele amor que tem
o seu início no «amado Filho», no Filho do eterno Pai que,
mediante a Encarnação, se tornou o seu próprio Filho. Sendo assim,
por obra do Espírito Santo, na ordem da graça, ou seja, da
participação da natureza divina, Maria
recebe a vida d'Aquele, ao qual ela própria,
na ordem da geração terrena, deu a vida como mãe. A Liturgia não
hesita em chamá-la «genetriz do seu Genitor» [Liturgia
das Horas,
de 15 de Agosto, solenidade da Assunção de Nossa Senhora, Hino das
I e II Vésperas; S. Pedro Damião,Carmina
et preces,
XLVII: PL
145,
934] e em saudá-la com as palavras que Dante Alighieri põe na boca
de São Bernardo: «filha do teu Filho» [Divina
Comedia, Paraíso
XXXIII, 1; cf. Liturgia
das Horas,
Memória de Nossa Senhora nos Sábados, Hino II para o Ofício da
Leitura (edição latina)]. E, uma vez que Maria recebe esta «vida
nova» numa plenitude correspondente ao amor do Filho para com a Mãe,
e por conseguinte à dignidade da maternidade divina, o Anjo na
Anunciação chama-lhe «cheia de graça».
“Maria,
Mãe do Verbo Encarnado, está colocada no
próprio centro dessa «inimizade»,
dessa luta que acompanha o evoluir da história da humanidade sobre a
terra e a própria história da salvação. Neste seu lugar, ela, que
faz parte dos «humildes e pobres do Senhor», apresenta em si, como
nenhum outro dentre os seres humanos, aquela «magnificência de
graça» com que o Pai nos agraciou no seu amado Filho; e esta graça
constitui a extraordinária grandeza e beleza de
todo o seu ser. Maria permanece, assim, diante de Deus e também
diante de toda a humanidade, como o sinal imutável e inviolável da
eleição por parte do mesmo Deus, de que fala a Carta
paulina:
«em Cristo nos elegeu antes da criação do mundo ... e nos
predestinou para sermos seus filhos adotivos» (Ef
1,
4.5). Esta eleição é mais forte do que toda a experiência do mal
e do pecado, do que toda aquela «inimizade» pela qual está marcada
toda a história do homem. Nesta história, Maria permanece um sinal
de segura esperança.”7
Portanto,
a Festa que celebramos hoje nos faz lembrar – na Encarnação do
Verbo – o
imenso amor de Deus pelos homens, e que “...
para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito
Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem.”8,
e uma vez unidos a Ele, Cabeça da Igreja, e em comunhão com todos
os Santos, possamos venerar, com especial devoção, a Bem-aventurada
sempre Virgem Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, a “cheia
de graça”.
Por
Maria a Jesus!
Sou
todo teu, Maria.
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_________________
1 cf.
Subsídios Homiléticos («Anunciação
da nossa santíssima Senhora, a Mãe de Deus e sempre Virgem
Maria»),
Pe. Pavlos Tamanini, capturado em
https://www.ecclesia.com.br/sinaxe/anunciacao.html.
2 Esta
Solenidade é tradicionalmente celebrado no dia 25 de Março de cada
ano (9 meses antes do Natal do Senhor), entretanto, no ano em curso,
coincidiu com o Domingo de Ramos ou da Paixão do Senhor, daí sua
transferência para essa data, logo após a Oitava da Páscoa do
Senhor.
3 cf.
“Lexicon – Dicionário Teológico
Enciclopédico”, tradução João Paixão
Netto e Alda da Anunciação Machado, Edições Loyola, 2003,
verbete: Anunciação, p. 36.
4 MIRANDA,
Pe. Antônio. “Nossa Senhora das Graças Estudo Doutrinário”,
Editora Luzes, 1952, Primeira Parte: Maria, Cheia de Graça, Cap. I
Nossa Senhora das Graças no Plano de Deus, pp. 19-20 (texto revisto
e atualizado).
5O
Santo Padre João Paulo II foi canonizado no dia 27 de abril de 2014
(Domingo da Divina Misericórdia), na Praça de São Pedro, pelo
atual Sumo Pontífice Papa Francisco.
6 cf.
«Bendito
seja Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual no alto dos
céus, nos abençoou com toda a sorte de bênçãos espirituais em
Cristo» (Ef
1,
3).
7 cf.
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html
(texto revisto e adaptado para o português do Brasil).
8 Credo
Niceno-Constantinopolitano (Symbolum
Constantinopolitanum),
cf.
https://www.ecclesia.com.br/biblioteca/fe_crista_ortodoxa/o_credo_niceno_constantinopolitano.html
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